eu preciso de um caderno

liège.
2 min readMay 16, 2022

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eu preciso de um caderno, caso contrário vou permanecer essa carpideira diante do mausoléu de textos que apago sem salvar. eu preciso de um caderno e de outras formas de me manifestar. è dificil me manter tão refugiada em mim mesma enquanto faço estes posts perigosamente públicos. eu preciso de um caderno, de um palco, de lápis de cor, preciso compor, preciso expor. preciso de amigos que me permitam simplesmente abraçá-los a troco de nada. preciso me expressar.

è tão sufocante me sentir eclipsada pela língua portuguesa. não há nenhuma possibilidade material de me enunciar como uma pessoa não-binária aqui e isso me deixa desesperada por outros recursos; visuais, somáticos, performáticos — mais que performativos. ser chamade em inglês por they/them se torna tão validador, logo pra mim, que visto essa máscara de quem não se importa com reconhecimento. è sobre ser vista. o português elu è contingente à pronúncia: élu remete a ela — êlu remete a ele. e a binariedade força caminho entre a dissidência. eis a impossibilidade de enunciação.

dia desses eu toquei uma outra pessoa não-binária; seu cabelo, sua cintura, seu rosto, o cheiro no seu pescoço, enquanto a gente dançava tudo esbanjava neutralidade e me produzia uma amálgama de tesão e disforia. eu queria ser daquela maneira. se a transmisógina teoria da autoginefilia tivesse uma contraparte não-binária, ali eu a estaria exercendo. tesão e disforia.

estou sufocada. preciso de uma nova labrys. preciso de um novo corte de cabelo. preciso de um caderno, preciso daquele corpo — qualquer das interpretações — preciso conseguir alguma coisa que nem sei o quê. preciso poder me falar, preciso poder me produzir em palavras, preciso poder me produzir em soma e psique. preciso que minha aparência seja lida e compreendida, sem sentir que todo o resto do mundo è funcionalmente analfabeto ao meu corpo. um corpo não-binário que antes da travessia tinha sua dissidência cobrada, e após a travessia não sabe aonde ir. eu quero o meio do caminho, eu quero o trânsito, eu quero a transitoriedade.

atualização: eu tenho um caderno agora, obrigada n. 💙

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liège.

Professora de Sociologia, com formação em Ciências Sociais pelo IFCS/UFRJ. Pesquiso anarquismo queer e dissidência sexual na República de Weimar.