estro junkie i: e eu não sou uma mulher?

liège.
3 min readDec 16, 2021

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em meados de 2019, conversando com dois dos meus afetos da época, me pergunto por que diabos não se pensou ainda em um “estro junkie”, uma contraparte transfeminina do testo junkie, um dos livros mais estudados do filósofo espanhol paul b. preciado

eis que um deles me apresenta Lis, que à epoca já escrevia sim aqui nesta plataforma ensaios com este mesmo título, ainda que diferentes do que eu havia inicialmente pensado. lis se tornou alguém com quem troco afetividades, referências, e de quem resolvi desapropriar a patente estro junkie

escrevo agora no meio de uma intoxicação de psicofármacos que me deixaram improdutiva o dia inteiro, seguida de algumas várias desilusões amorosas pelas quais passei este ano, seguida também da recém-anunciada morte de bell hooks — motivo pelo qual nomeeei este textículo — aproveitando o ensejo lúgubre e benzodiazepínico para contar o processo afetivo que está sendo minha mudança de documentos para “sexo não binárie”

bell hooks (1952–2021)

fui uma das 47 pessoas não-binárias do país que em 2021 conseguiriam retificar essa prótese jurídico-administrativa chamada certidão de nascimento. eu não ia fazê-la. a esta altura, para mim não traria nada de novo o reconhecimento do estado. mas percebendo que poderia ser um precedente importante para muites, que isso exigiria que as instituições discutissem questões como aposentadoria segregada entre homens e mulheres, e inspirada por indianarae siqueira que esperava esta possibilidade há anos, resolvi me juntar

“sexo não-binárie” é uma expressão ambivalente para mim. soa contraintuivo chamar de sexo um paradigma e uma epistemologia que foram construídas no seio da negação de uma pré-discursividade da natureza. em algum nível, me pareceu que estivesse perfumando um conceito podre. por outro lado, entendo que sexo é, e sempre foi, o próprio gênero, como escreveu butler; isso me consolou a troca de expressões, ao menos um pouco. vou fingir que acredito que existe algum tipo de contaminação deste conceito.

enquanto discutia com a defensoria pública qual expressão seria usada para neutralizar meu sexo — conversa que, como podem ver, não deu em nada — desejei que constasse como “não determinado”, “não informado” ou qualquer outra ausência que eufemizasse a minha real intenção de dizer “não interessa a você, palhaço”

pois então, fomos: eu e minha mamma juntas ao cartório cumprir essa missão, com sentença judicial em mãos. ela, que já havia me acompanhado na correção de certidão de nascimento anterior, quando ainda não era possível neutralizar esta informação, sugeriu de própria vontade me acompanhar novamente :)

minha mãe até hoje não entende o significado de cisgeneridade. mas tampouco qualquer professor universitário que não estuda questões de gênero parece entender. ela confunde conceitualmente heterossexual e cisgênero. e eu, que não sou crente de nenhum tipo de taxonomia remanescente do maldito biscoito de gênero que tanto desinformou a internet com separações monolíticas entre “identidade de gênero” e “expressão de gênero”, etc., entendo que seja até mais estratégico permitir que ela entenda heterossexual e cisgênero como conceitos coextensivos (que de fato são!)

e eu, que não sou uma mulher, estou confortável com o entendimento que ela teve de não-bináries como “quem não é homem nem mulher”. dando cabo ao pensamento wittiguiano que muito me influencia: já lésbicas não são mulheres. e eu que não sou uma mulher, e sou somaticamente interpretada nas ruas como “sapatão” e “viado” na mesma semana, que sou trans, não-binária, bissexual, prefiro retomar às reivindicações de ser “não determinada”, “não informada” e “não interessa a você, palhaço”.

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liège.

Professora de Sociologia, com formação em Ciências Sociais pelo IFCS/UFRJ. Pesquiso anarquismo queer e dissidência sexual na República de Weimar.